Participa a música, os músicos, em projectos de uma “cidade ideal”?A memória histórica do século XX, no que também tem de terrível com a experiência dos totalitarismos, implica uma precaução de princípio com as confluências de “utopias artísticas” e “utopias políticas”, com o que foram num campo e noutro as concepções de “vanguarda”, verificados os seus reversos distópicos.
Mais – é genericamente o conceito de “cidade ideal” que deve ser também ser interrogado.
Se o conceito foi retomado pelas concepções neo-platónicas renascentistas, há em primeiro lugar que reconsiderar a fonte primeira.
O que prescria Platão na Politeia, A República na tradução romana de Cícero? “A introdução de um novo género de música é algo de que nos devemos acautelar como um perigo que pode pôr tudo em risco. Os modos musicais nunca são modificados sem abalar as mais fundamentais convenções políticas e sociais”.
A inscrição social da música deixa supôr espaço para concepções e propostas “perigosas” para as ordens sociais estabelecidas. São manifestações concretas dessa possibilidade heterodoxa que importam neste concerto.
As mais das vezes rasurados nos entendimentos prevalecentes, não faltam no entanto exemplos de posicionamentos políticos na música do século XX. Em primeiro lugar os directamente provindos das ordens políticas totalitárias do nazismo e do estalinismo. Mas também os casos de autores manifestando em obras posicionamentos em dissonância com os preceitos vigentes ou de “protesto”. Por exemplo, as posições de Britten (Sinfonia da Requiem) e Tippet (A Child of Our Time) durante a II Grande Guerra, ou o anti-fascismo de Dallapicola (Canti di prigionia e Il prigioniero).
Também na turbulência da Alemanha entre as duas guerras, ou mais exactamente até ao triunfo do nazismo, não faltam exemplos – houve mesmo modos e correntes variadas de directa inscrição social da música, de Hindemith aos compositores do círculo de Brecht, Kurt Weill e Hans Eisler.
A “guerra fria” também “glaciou” o debate político da música, retomado algo isoladamente por Hans Werner Henze, afastando-se da “vanguarda” de Darmstadt, e não menos sendo por essa “excluído”, e depois, mais genericamente, com a agitação contestatária dos anos 60.
Epítome de uma inscrição política da música, Luigi Nono definia cinco posições, no princípio dos anos 70, num debate do jornal Il Manifesto, aliás publicado em Portugal, graças à ousadia editorial de Snu Abecassis, num volume dos “Cadernos Dom Quixote”, Itália – entre direita e esquerda – volume logo depois posto pela censura “Fora do mercado”.
“A primeira posição, que é genericamente a de Pierre Boulez, postula como adquirida a inexistência de qualquer relação entre música e revolução. Se o músico quer fazer a revolução, pega na espingarda; quando faz música, é segundo leis ‘objectivas’ da sua estética. Não é por acaso que Boulez, depois de ter assinado com Sartre o Manifesto dos 121 [contra a guerra da Argélia, e pelo direito à insubmissão dos soldados], foi dirigir a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque, o mais oficial dos organismos oficiais da cultura americana.
A segunda posição é mais ou menos a de Mauricio Kagel: tem em conta Maio de 68 mas inverte a proposição. Segundo Kagel, só a cultura pode fazer a revolução: a classe operária está integrada, o campesinato não existe, pelo que é inútil operar uma junção com forças socialmente inoperantes. Pelo contrário, a partitura, enquanto produto técnico avançado, explora em si as contradições explosivas do capitalismo avançado; romper a linguagem significa colocar-se em posição revolucionária. É uma outra maneira de afastamento da luta, de integração num meio de experimentação estética perfeitamente aceitável por uma burguesia mais culta; em suma, em nome de um ‘adornismo’ mal compreendido, ou pelo contrário, compreendido bem demais, e de uma concepção elementar da classe operária e da relação de exploração, restabelece-se a posição de privilégio e isolamento na prática do intelectual.
Uma terceira posição é a de Stockhausen: a tecnologia como valor, a teorização de uma evolução tecnológica-estética indolor, a ligação imediata com os locais de ligação técnica mais avançada, o desprezo aristocrático por todas as outras culturas. É talvez a posição ideológica capitalista ou neocapitalista mais consequente; sem hesitação, considero-a uma posição ‘imperialista’.
A quarta posição é a de alguns grupos políticos de esquerda, sustentando que sendo qualquer linguagem derivada da burguesia, não há arte ou produção cultural que não tenha esta marca maldita. Toda a cultura seria actualmente impossível, ela não poderia existir senão depois da revolução. Assim se oferece o enésimo álibi ao músico: na incapacidade de colocar o problema de um laço intrínseco com a revolução, continua a fazer música com antes... mais ou menos indiferente. Uma pessoa como eu, que tenta estabelecer esse laço no terreno de uma tecnologia avançada, é considerado um ‘porco burguês’. Haja paciência!
Enfim, a quinta posição, a minha, é a que tenta definir uma cultura como modo de tomada de consciência, de luta, de provocação, de discussão, de participação. Ela comporta o uso crítico de instrumentos, de linguagens historicamente recebidas ou inventadas, a recusa de qualquer concessão eurocêntrica ou aristocrática da cultura e da linguagem, um método de trabalho fundado no confronto comum com as forças sociais...”
Para além da devida contextualização num quadro histórico marcado pelo impulso “contestatário”, após Maio de 68, haverá que matizar pelo menos dois aspectos nos propósitos de Nono; um, inerente a esse contexto, é o destaque fetichista do objectivo de “Revolução”, perspectiva que, com a dissolução genérico de tal conceito enquanto transformação global, política, social e cultural, de ordens estabelecidas, poderia mesmo bloquear o entendimento da cultura, e, em concreto da música, como comportando também a possibilidade de “modo de tomada de consciência, de luta, de provocação, de discussão, de participação”; o outro é que a ausência de um nexo entre prática musical e prática civíca-política não se pode restringir à caracterização que Nono fazia de uma posição como a de Boulez – um Colin Conlon, por exemplo, que foi um dos muitos americanos que combateram ao lodo da República Espanhola nas Brigadas Internacionais, e que, depois do retorno aos Estados Unidos, inclusive preferiu buscar refúgio no México por motivos políticos, nunca manifestou, todavia, qualquer directa posição política-social na sua experimentação musical.
Não obstante estas necessárias matizes, e com elas, o posicionamento de Luigi Nono é referência primordial na consideração da inscrição na “pólis” de práticas musicais contemporâneas.
Os distintos paradigmas de Boulez e Stockhausen continuam contudo dominantes nas concepções provindas do serialismo e pós-serialismo, ou, de outro modo dito, na ordem dominante da música contemporânea – e na sua incapacidade, ou alheamento, de sequer considerar outros modos de nexo político-social, que não o das práticas correntes de concerto, no acentuado conformismo que as caracteriza. Diferentes são os casos presentes neste concerto.
Antes do mais, a figura rasurada e também trágica de Cornelius Cardew (1936-1981). Antigo discípulo e assistente de Stockausen, Cardew foi também os dos primeiros compositores europeus a colocar-se na área de influência de John Cage, vindo a introduzir na Grã-Bretanha autores americanos como Morton Feldman, La Monte Young, Earle Brown ou Christian Wolff. Foi também um dos primeiros a lançar-se nas práticas da improvisação colectiva, com a fundação do grupo AAM e depois da Scratch Orchestra. Após 1972, foi um dos “atingidos” pela vaga marxista-leninista-maoísta na Europa; “denunciou” os seus antigos mestres, Stockhausen mas também Cage, num panfleto, Stockhausen serves imperialism, e foi inclusive um dos fundadores e dirigente do Partido Comunista Revolucionário Britânico (Marxista-Leninista). A deriva grupuscular e dogmática comportou a inerente auto-crítica, nomeadamente em razão de uma das suas obras maiores, The Great Learning, com textos de Confúcio em traduções de Ezra Pound (um dos diversos preceitos do totalitarismo maoísta em que se formaram tantos espíritos dogmáticos foi a crítica de Confúncio). As suas composições do período são exemplo de uma concepção imediata de “música militante”, convicto de que cantar A Internacional era uma experiência musical mais complexa e forte “do que toda a vanguarda”. Morreu num acidente de automóvel; o facto de o condutor nunca ter sido identificado fez surgir rumores de um ajuste de contas político.
Apesar da sua deriva grupuscuslar e dogmática – de resto sintomático exemplo também das consequências de “pôr a política no posto de comando” – Cornelius Cardew foi um compositor bastante influente. Da sua área provieram músicos como Michael Nyman (tem sido argumentado que o termo “minimalista” foi cunhado por Nyman numa crítica a The Great Learning publicada em 1968 no Spectator) e mesmo Brian Eno, ou mais directamente Alvin Curran (For Cornelius é uma obra de homenagem que ainda há dias foi interpretada por Eve Egoyan nos “Dias da Música” do CCB). Outra homenagem foi feita pelos Sonic Youth, no álbum SYR4: Goodbye 20th Century, com uma realização da peça mais importante de Cardew, a incluída neste programa, Treatise.
Assombrosa partitura gráfica, Treatise toma título do Tratactus Logico-Philosophicus de Wittgenstein. Deduzir-se-á então que é uma reflexão sobre a linguagem, em concreto sob os modos de enunciar colectivamente os modos de uma linguagem. Obra de 1963-67, anterior pois ao período directamente militante do autor, Treatise não deixou de ser a obra recorrentemente retomada nas homenagens ao compositor, como formulação e exemplo maior de práticas colectivas de música.
Esse mesmo propósito genérico de práticas colectivas ocorre também em Worker’s Union de Louis Andriessen (n. 1939), o compositor holandês que foi o primeiro na Europa a orientar-se no sentido da escola minimal-repetitiva americana, e em Coming Together de Frederic Rzweski (n. 1938), compositor e pianista americano, que em 1960-1971 esteve radicado em Itália – foi aluno de Berio e conviveu com Scelsi, tendo fundado com Alvin Curran e Richard Teitelbum o grupo Musica Elettronica Viva e colaborado com músico de jazz como Steve Lacy e Anthony Braxton. Entre outras obras, as Variações “El Pueblo Unido Jamas Será Vencido”, monumental peça pianística sobre a canção da Unidade Popular Chilena cujo mote foi retomado em Portugal logo após o 25 de Abril, é sintomática da directa inscrição política das suas obras, posicionamento que Rweski, aliás, mantém com uma rara coerência – por exemplo, colocou todas as suas partituras à disposição na Internet, prescindo da intermediação mercantil de um editor.
Como o título implica, Worker’s Union retoma do modelo da associação em sindicato a junção colectiva dos músicos, ou dos produtores de música. Coming Together é uma obra de algum modo a considerar como “de protesto”, tendo como referência o motim na prisão de Attica, no Estado de Nova Iorque, em Setembro de 1971 (Rwzeski compõs também uma outra obra, Attica), e fazendo uso das cartas escritas ao irmão por um dos prisioneiros revoltosos, Sam Melville, que tinha sido encarcerado na sequência de protestos violentos contra a guerra do Vietname e foi morto durante o motim.
Heiner Goebbels (n. 1952), estudou música e sociologia. Diferentemente do que de reflexão também política ocorre em obras de outros proeminentes compositores alemães, como Dieter Schnebel ou sobretudo Helmut Lachenmann, Goebbels retomou o exemplo estabelecido de Hans Eisler, em particular nas suas obras com textos de Heiner Müller. Nesse sentido também, a inscrição social e política da sua produção reconfigura os textos como matéria não só de articulação musical como também de enunciação cénica.
Befreiung/Libertação foi composta para a Alte Oper de Frankfurt, em 1989, por ocasião do bicentenário da Revolução Francesa. Inicialmente reticente à encomenda, por considerar a ocasião comemorativa bloqueadora de um confronto com a História, Goebbels encontrou todavia na trilogia teatral Krieg/Guerra de Rainald Goetz e, em concreto em “Stannheimer” e “Heidegger”, e em duas “figuras” desintegração e organização, a matéria possibilitadora de suscitar um confronto directo dos espectadores/auditores com as tensões políticas enunciadas.
A Jorge Peixinho (1940-1995) devemos, nunca é demais recordá-lo, o efectivo início de práticas musicais contemporâneas em Portugal. Peixinho foi também um “autor político” em todos os sentidos, do que de gesto político havia no seu confronto com o marasmo e o conservadorismo dominantes até à directa evocação política em numerosas obras suas, como CDE (dó-ré-mi, mas também acrónimo do movimento político oposicionista, Comissão Democrática Eleitoral), Elegia a Amílcar Cabral ou Morrer em Santiago.
Quando em 1978, tendo a responsabilidade executiva de produzir o primeiro concerto público de iniciativa da RTP, no Dia Mundial da Música, 1 de Outubro, a realizar no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian e com transmissão directa, o qual constava exclusivamente de obras de autores portugueses, da polifonia renascentista ao presente, e tendo já Fernando Lopes-Graça possibilitado para esse concerto a estreia de uma obra, Quatro Peças em Suite, aproximei-me de Jorge Peixinho no sentido de o mesmo ocorrer com ele; sugeri-lhe, uma vez que estava assegurado um trabalho de produção em que Peixinho tantas vezes tinha que gastar as suas energias, a hipótese de A Idade do Ouro, mas ele invocou problemas dos materiais (a obra só seria estreada postumamente) e contrapropôs A Aurora do Socialismo (Madrigale Capriccioso), obra de 1975-76 – e talvez a única composição política erudita directamente dimanada do mais político dos períodos em Portugal, o chamado PREC, Processo Revolucionário em Curso, dominado pelo imediatismo das “intervenções”.
Jorge Peixinho foi comunista e a imagem de uma “aurora do socialismo”, herdada do imaginário da Revolução Russa, era parte das suas convicções. No seu empenhamento nunca houve concessões estéticas e Aurora do Socialismo inscreve-se claramente numa trajectória musical, de “Harmónicos” a obras finais como as várias designadas de Glosa e Nocturno. Agora, que o imaginário de uma “aurora do socialismo” perdeu a pertinência histórica mobilizadora que eventualmente podia ter tido, ouvir de novo a obra é um confronto directo com a memória do 25 de Abril.
Augusto M. Seabra